Moçambique faz frente ao duplo fardo do cancro do colo do útero e HIV
Mercedes Sayagues
MAPUTO, 31 de Outubro de 2014 (IPS) – A mulher na cama 27 da enfermaria de oncologia do Hospital Central de Maputo (HCM) não tem ideia alguma da sorte que teve.
Em Janeiro, quando dores abdominais a atormentavam, um farmacêutico sugeriu-lhe a toma de analgésicos. Durante meses “a dor desaparecia e depois voltava a aparecer,” contou à IPS.
Em Abril visitou a clínica local na Matola, cujas enfermeiras receberam formação e meios para detectar o cancro do colo do útero. Foi-lhe detectado um tumor invasivo e a paciente encaminhada para o Hospital Central de Maputo (HCM). A quimioterapia teve início em Junho. Quando a IPS se encontrou com ela, tinha acabado de terminar o terceiro mês de quimioterapia. Os médicos estão optimistas.
O que a salvou foi algo novo em Moçambique – o rastreio de rotina para o cancro do colo do útero efectuado por enfermeiras em centros de saúde básicos.
“As mulheres procuram ajuda quando sentem dor, e a dor indica que o cancro já está num estado avançado,” explicou Ana Mafalda Chissano, enfermeira. “Mas se forem ao ginecologista para fazer o teste Papanicolau isso demora meses, além do tempo despendido e do custo do bilhete de autocarro. Nessa altura já é tarde demais.”
Moçambique tem a taxa de risco e mortalidade acumulada devido ao cancro do colo do útero mais elevada de África — sete em cada 100 recém-nascidas irão contrair este cancro e cinco vão morrer devido a ele — e está em segundo lugar em termos de incidência depois do Malawi, de acordo com a Coligação Africana sobre saúde materna, neonatal e infantil.
Todos os anos, 5.600 moçambicanas são diagnosticadas com cancro do colo do útero. Deste número, 4.000 morrem – 11 todos os dias. Não há radioterapia paliativa; é uma morte dolorosa.
Estas são apenas as mortes registadas. Só um pouco mais de metade dos moçambicanos tem acesso a cuidados médicos, e portanto muitas morrem em casa sem serem diagnosticadas.
“Factos Sobre o Cancro do Colo do Útero em Moçambique:
- 7.3 milhões de mulheres com mais de 15 anos podem contrair o HPV
- 820.000 mulheres seropositivas com elevado risco de cancro do colo do útero
- 5.600 mulheres diagnosticadas com cancro do colo do útero todos os anos
- 4.000 mulheres morrem com cancro do colo do útero todos os anos
- Um terço das mulheres é portador do HPV
Fontes: ONUSIDA, OMS, CISM, JHPIEGO
O HIV como factor de risco
A alta seroprevalência de HIV – um em cada 10 moçambicanos é seropositivo – agrava o problema. As mulheres seropositivas têm um risco mais elevado de desenvolverem este cancro, e a uma velocidade letal.
“Quanto mais fraco estiver o sistema imunitário, mais rápida a expansão do cancro do colo do útero,” explicou o Dr. Amir Modan, do Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP) em Maputo.
Chissano trabalha com a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) no Alto Maé, numa clínica governamental em Maputo onde a taxa de prevalência do HIV é 20 por cento. Entre as mulheres seropositivas diagnosticadas aqui, um terço indica a presença de lesões pré-cancerosas ou cancro do colo do útero, disse Chissano à IPS.
O cancro do colo do útero é o cancro mais frequente nas mulheres moçambicanas entre os 15-44 anos, disse Modan.
As autoridades de saúde estão a lidar com o problema através de campanhas de informação e da integração de rastreios de rotina nos serviços de planeamento familiar. Esperam chegar a todos os distritos até 2017.
Cerca de 1.000 enfermeiras receberam formação, disse a Drª Aventina Cardoso, assessora de cancro cervical na Jhpiego, grupo na área de saúde em Moçambique. “Mas a procura e as necessidades são superiores aos recursos humanos.”
A informação da Jhpiego mostra que dez por cento das mulheres que fazem os rastreios indicam lesões pré-cancerosas e cinco por cento têm cancro do colo do útero.
Depois do tratamento com criocirurgia (congelamento), a mulher deve abster-se de ter relações sexuais durante 30 dias.
Isto pode ser complicado, disse Janet Gibunda, enfermeira do MSF na clínica do Alto Maé, porque muitas mulheres têm de informar os maridos sobre a proibição de relações sexuais antes de avançarem com o tratamento.
“Mas elas regressam, e não as perdemos,” disse. “Penso que as fotos chocantes do cancro em estado avançado que lhes mostramos as fazem regressar.”
A prevenção salva vidas
Este ano, em três distritos no sul, centro e norte de Moçambique, foram vacinadas 8.500 raparigas com 10 anos para as proteger do vírus do papiloma humano (HPV), durante um projecto-piloto. É preciso administrar a vacina antes das jovens se tornarem sexualmente activas e ficarem expostas ao HPV.
As jovens vão receber a terceira e última dose este mês, explicou à IPS Khatia Munguambe, investigadora junto do Centro de Investigação em Saúde de Manhiça (CISM).
Manhiça está localizada a 90 quilómetros a norte de Maputo e é um dos sítios-piloto. O Centro de Investigação em Saúde de Manhiça estuda os tipos de HPV comuns em Moçambique e dá formação ao pessoal responsável pela vacinação.
Munguambe está a investigar a aceitação, por parte das comunidades, da vacina e encontrou “muito poucas rejeições na Manhiça”.
O próximo passo é a expansão do programa. Em 2015, todas as jovens nascidas em 2005 em Manhiça e Vila de Manica no Sul e ainda em Mocímboa da Praia no Norte vão ser vacinadas.
A Jhpiego, filiada da Universidade John Hopkins em Maputo, dá formação a enfermeiras e médicos sobre os rastreios de rotina com uma técnica inovadora – a inspecção visual com ácido acético (VIA).
Antes do VIA, a detecção implicava o uso do teste Papanicolau ou esfregaço cervical, que exige pessoal especializado e laboratórios dispendiosos, e cujo resultado pode demorar semanas devido à falta de técnicos.
Com o VIA, a enfermeira esfrega o colo do útero com ácido acético ou vinagre branco e o tecido danificado fica branco. A enfermeira pode removê-lo imediatamente com criocirurgia (congelamento) ou pedir uma biópsia e encaminhar o caso para um médico.
Uma vez que é fácil, rápido e barato, o VIA exige pouco pessoal e equipamento. A detecção e o tratamento ocorrem durante a mesma visita, reduzindo o peso económico e pessoal dos cuidados de saúde. Em zonas rurais e pobres, isto é uma bênção.
Os principais problemas com que a Jhpiego se depara são as avarias frequentes do equipamento de crioterapia, a rotatividade de pessoal formado e a manutenção da qualidade durante o diagnóstico.
Sexo prematuro e bruxaria
O cancro do colo do útero é provocado pelo vírus do papiloma humano (HPV), que é transmitido principalmente durante as relações sexuais. É um vírus comum; muitas pessoas são portadoras do vírus mas em estado dormente.
Dos 40 tipos de HPV, alguns desaparecem espontaneamente enquanto outros causam verrugas na área genital e outros provocam o cancro.
Os factores de risco do cancro do colo do útero incluem o HIV, as primeiras relações sexuais prematuras, infecções transmitidas por via sexual, parceiros sexuais múltiplos, uso de contraceptivos orais a longo prazo, fumar e uma história de cancro na família.
Outro factor de risco é a reduzida utilização de preservativos. Menos de um quarto das pessoas usa preservativos durante as relações sexuais de risco, contou Modan, aumentando a exposição tanto ao HPV como ao HIV. A infecção do HPV duplica o risco de aquisição do HIV, enquanto o HIV acelera a progressão do cancro do colo do útero.
A elevada fertilidade numa idade precoce e um elevado número de nados-vivos aumentam o risco. Isto são más notícias para as crianças casadas em Moçambique. Quatro em cada dez raparigas são mães aos 19 anos de idade e em média uma mulher dá à luz mais de cinco filhos, disse Modan.
“As raparigas começam a ter relações sexuais muito cedo; aos 25 anos já podem ter 12 anos de sexo,” explicou Cardoso.
Segundo o Inquérito Demográfico e de Saúde de 2011, um terço das mulheres tem as suas primeiras relações sexuais antes dos 15 anos.
A paciente na cama 27, que agora tem 52 anos, casou-se aos 15 anos e deu à luz sete filhos.
Layne Heller é uma voluntária cristã na enfermaria de oncologia do Hospital Central de Maputo. É o quinto ano que dá apoio emocional aos pacientes durante os longos e solitários meses de quimioterapia, que são especialmente difíceis para as mulheres provenientes das províncias.
“Elas têm muito medo,” contou Heller. “Em casa, a percepção é que as mulheres são enviadas para o HCM para morrer. Ficam apavoradas.”
Até certo ponto isto era verdade. As mulheres chegavam ao hospital na fase terminal do cancro e morriam. Mas agora, com a detecção antecipada e melhor tratamento, um maior número de mulheres sobrevive.
Um estudo efectuado por Cardoso na província da Zambézia em 2010 constatou que metade das mulheres entrevistadas associava o cancro do colo do útero à promiscuidade e 42 por cento à bruxaria e feitiço.
“O cancro do colo do útero era denominado ‘a doença do vizinho’ porque as pessoas acreditavam que algum vizinho lançara uma maldição sobre a mulher,” explica Cardoso. “Mas isso está a mudar devido à campanha de informação.”
Lançada em 2013 e liderada pela anterior Primeira-Dama, Maria da Luz Guebuza, a campanha saturou a imprensa e toda a espécie de eventos, desde o dia da mãe até desfiles de moda.
Uma questão importante, apontou Cardoso, é reforçar o conceito de prevenção nos cuidados de saúde.
“A prevenção não faz parte da nossa cultura,” disse. “Só vamos para o hospital quando estamos doentes. Esta atitude está a mudar lentamente à medida que as pessoas começam a perceber a importância da prevenção.”
Publicado pelo serviço em Português da IPS (Inter Press Service)
Publicado em A Verdade nº 315 de 28 de Novembro de 2014, pág. 5