Breves
Democracia, cultura e direitos humanos
Pode haver democracia com exclusão das mulheres?
Este texto defende que o respeito pelos direitos humanos não significa ignorar a diversidade cultural, pois a cultura e os direitos humanos não são conceitos dicotómicos, têm que ser vistos na sua relação com as mudanças, e com os princípios de igualdade consignados nas leis nacionais.
Na prática política do activismo pelos direitos humanos, vemos muitas vezes recusada a associação dos conceitos de democracia e direitos humanos, com a cultura. Esta recusa tanto surge implícita na actuação das instituições do Estado, como também se traduz, quase sempre de forma superficial mas não menos assertiva, em escritos e declarações que nos chegam da academia. Fundamentalmente, o que está em causa é a defesa dos direitos e da diversidade cultural dos povos, ameaçada pela hegemonização das leis nacionais, vistas como imposição do estrangeiro, e trazendo em si a ameaça da homogeneização e da descaracterização.
Estas posturas, que se manifestam de forma mais ou menos aberta sempre que se trata de exigir direitos humanos para as mulheres, são insidiosas na forma como se expressam e na maneira como resistem a qualquer desafio que convoque uma reflexão da sociedade na sua totalidade, com os princípios que a norteiam, com as suas instituições democráticas e com a situação em que vivem as/os cidadãs/cidadãos, suas necessidades e seus anseios.
Estas objecções à mudança são altamente ideológicas e deixam entender percepções sobre a cultura que a vêm como estática, coerente e integrada. É suposto que cada “cultura” tenha características básicas reconhecidas e partilhadas pelos membros de um grupo particular, num processo que necessariamente simplificará e homogeneizará a dita “cultura”, não dando conta dos conflitos e das contradições, isto é, dos seus dissidentes. Ignora-se também, com frequência, as mudanças e as grandes diferenças mesmo no interior do grupo que reivindica essa cultura como seu referente identitário. Deixa-se de lado, igualmente, a sua natureza hierárquica, que cristaliza desigualdades, das quais os chefes tradicionais são o garante.
As dinâmicas da cultura vão simultaneamente no sentido da sua conservação, reagindo ao que é externo, apropriando-se, convivendo e neutralizando, e da contestação interna. Mesmo que se queira perseguir uma pureza cultural, as mestiçagens são intrínsecas à sua própria continuidade.
Por isso é que uma visão essencialista da cultura, em que ela quase se autonomiza das próprias pessoas e, portanto, das relações que elas têm umas com as outras, ignora os dinamismos e as mudanças, os descrentes e as desigualdades, tornando impossível o seu questionamento.
Com efeito, a cultura não é uma entidade acima de tudo, nem algo que se possui, mas aquilo que nós fazemos. É uma maneira de conceptualizar práticas e crenças, a continuidade e a mudança. Em 2003, um grupo de organizações de mulheres escreveu a este propósito:
“Não aceitamos nunca mais que a cultura africana se constitua como expressão da violação dos Direitos Humanos das Mulheres. A cultura – qualquer cultura – é a manifestação daquilo que nós somos, a topologia dos nossos afectos, e onde nos revemos como pessoas humanas. A cultura é feita de pequenos gestos, é a arte de sobreviver com nada ou quase nada, a arte de continuar a lutar quando as condições são adversas. (…) Por isso a cultura é tanto dos homens como das mulheres, e não pode ser usada para justificar a violação dos direitos mais básicos de uma parte da população.”[1]
Por isso, a cultura deve, sim, ser equacionada com a democracia e com os direitos humanos. O respeito pela diversidade cultural deve ter por base um marco comum ético, que promova e considere os direitos humanos. A cultura e os direitos humanos não são conceitos dicotómicos, têm que ser vistos na sua relação com as mudanças, e com os princípios de igualdade consignados nas leis nacionais.
Um caso recente, de 2012, pode servir como exemplo deste confronto entre direitos humanos e cultura.
Por ocasião da discussão da revisão do Código Penal (datado de 1886), a Comissão Parlamentar dos Assuntos Constitucionais, Direitos Humanos e Legalidade, da Assembleia da República, orientou um debate com a sociedade civil, no mês de Agosto. Na abertura da sessão, o Presidente da Comissão deu especial destaque ao Artigo 4º da Constituição da República, sobre o Pluralismo Jurídico, que disse constituir a base da acção de legislar e perspectiva estruturante que guiou o seu trabalho.
O referido artigo da Constituição diz o seguinte:
“O Estado reconhece os vários sistemas normativos e de resolução de conflitos que coexistem na sociedade moçambicana, na medida em que não contrariem os valores e os princípios fundamentais da Constituição” (sublinhado de nossa autoria).
Na altura, várias questões foram colocadas: a afirmação de que o pluralismo jurídico é a base para a revisão do Código Penal, o que quer dizer? Que devemos tomar os costumes e as tradições locais como única referência? Que devemos ir contra a Constituição e reconhecer na lei tradições que violem os princípios fundamentais? A ser assim, é legítimo perguntar quais serão os limites dessa tolerância do costume perante a lei. Por exemplo, as mortes por feitiçaria passam a ser legítimas porque fazem parte da tradição em algumas regiões? Ou então as uniões forçadas de crianças de 7, 9 ou 13 anos (normalmente chamadas de “casamentos prematuros”) passam a ser legítimas porque esse é o costume? Até onde vai essa tolerância? E quem decidirá dos seus limites? E quem seleccionará que aspectos devem ser tolerados e que aspectos devem ser combatidos?
Argumentos semelhantes foram também esgrimidos quando se discutiu uma proposta de lei contra a violência doméstica praticada contra as mulheres, que finalmente foi aprovada em 2009. Em causa estava a ideia de que a violência doméstica, como crime, era uma “criação” que vinha do ocidente, pois nas culturas locais moçambicanas o uso de violência e a demonstração de força por parte dos maridos não eram percebidos como violência pelas mulheres. Mais uma vez, o que se pretendia era garantir que a família, entendida como espaço de cultura, fosse preservada e arredada da mudança, que devia circunscrever-se ao espaço público.
Podemos ainda recuar mais e falar do processo de elaboração da Lei da Família, aprovada em 2004 depois de longos anos de discussão. Questões como, por exemplo, a legalização ou não da poligamia, a chefia da família, ou a idade núbil, foram muito contestadas, porque se pretendia garantir a igualdade e os direitos das mulheres e das raparigas, só reconhecendo o casamento monogâmico, estabelecendo que tanto homens como mulheres podem ser os chefes de família e fixando limites mínimos de idade para o casamento. Em causa estava que precedência têm os direitos individuais perante os direitos culturais e religiosos.
Perante estas situações, vale a pena relembrar que a democracia só o é, se for inclusiva e se não deixar de lado os interesses e as necessidades de todos e de todas. O respeito pelos direitos humanos não significa ignorar a diversidade cultural que está e estará mais e mais presente, num momento em que os movimentos populacionais são mais frequentes, nesta era da globalização. A comum pertença ao género humano, de homens e de mulheres, e de indivíduos de todas as origens e crenças, é que deve guiar a nossa democracia.
Por Maria José Arthur
[1] “Carta Aberta aos Chefes de Estado por ocasião da II Cimeira da União Africana”, Maputo, Julho 2003.
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