Breves
Cegos, surdos e mudos: que democracia sem espaço de debate público?
A democracia poderá conviver com espaços privados ou comunitários onde não se admitem questionamentos? Este texto equaciona o exercício da cidadania com a necessidade de espaços de debate que permitam a participação activa das cidadãs e dos cidadãos na defesa dos direitos humanos.
Numa democracia, a participação das cidadãs e dos cidadãos torna-se possível pela existência de espaços públicos nos quais as opiniões divergentes podem coabitar e fazer-se ouvir. O “público” significa o que é comum, portanto o oposto do privado, oposição esta que remonta à cidade grega. A noção de espaço público assume, contudo, outras acepções. Habermas (1994)[1] considera que o espaço público designa o lugar de formação das opiniões e das vontades políticas, que garante a legitimidade do poder. É o lugar do debate e do uso público da razão argumentativa, onde são discutidas as questões práticas e políticas. Para que o espaço público seja um espaço de formação da opinião pública é necessário a existência de três requisitos: 1) que os direitos de liberdade de expressão, de reunião e de associação sejam respeitados, 2) que os espaços públicos realmente existam, 3) que todos os assuntos ligados ao campo religioso, político, cultural ou social possam ser livremente debatidos.
Porém, constatamos que são raros os espaços de debate público em Moçambique ou que são muitos os tabus sobre os quais não se pode emitir críticas ou opiniões discordantes. É o caso das práticas culturais ou das crenças tradicionais que são questões difíceis de levar para o debate público. O peso do silêncio sobre estes assuntos mostra o quanto a cultura não está democratizada em Moçambique. Seja dentro da família ou dentro da comunidade, parece não existir espaço no qual é possível questionar ou criticar as práticas culturais. A tradição é representada como algo imóvel que tem que resistir as ameaças. Neste sentido, o carácter não negociável da cultura parece entrar em conflito com um modelo de democracia baseado na protecção dos direitos de expressão e de livre escolha.
Perante a escassez destes espaços de questionamento, observamos que a Internet cumpre hoje um papel substitutivo abrindo novos caminhos para a circulação de ideias e o confronto de opiniões. De forma crescente, nota-se que os espaços virtuais como os websites ou os blogs permitem uma interacção que pode compensar algumas lacunas da democracia em Moçambique. Um exemplo disto foi o debate que surgiu no website da WLSA[2] depois da publicação de uma carta aberta no Jornal Notícias intitulada Violação grave dos direitos humanos das mulheres em nome da tradição,[3] que denunciava a violação colectiva por 17 homens de uma mulher que cruzou o perímetro dos ritos de iniciação masculinos em Pemba. Esta carta deu origem a um debate interactivo com mais de 45 comentários sobre o assunto, entre os quais: “precisamos meter na cabeça que todos nós beneficiamos com esta mudança de mentalidade, ganhamos com o pensar diferente, ganhamos com a agenda de género!”; ou ainda: “é inconcebível que líderes espirituais a quem a comunidade confia cegamente os seus destinos tenham atitudes [pouco] escrupulosas como esta…”. O debate permitiu então questionar as práticas culturais em Moçambique e suas implicações para os direitos humanos num contexto em que a violência ligada às mesmas é ainda silenciada, sobretudo no que diz respeito aos direitos das mulheres.
No entanto, o papel que cumpre a Internet para corrigir os deficits da democracia encontra-se fortemente limitado pelo fraco acesso da população moçambicana e pela censura crescente deste meio de comunicação, como o demonstra o 5º relatório de transparência do servidor Google que denuncia o aumento das demandas de censura pelos Estados, sobretudo pelo Reino Unido, pelo Brasil e pela Alemanha.[4]
Porque é que é tão importante que existam espaços de debate numa democracia? Porque essas arenas de contrapoderes são a única via de ter uma democracia viva que assente numa participação activa das cidadãs e dos cidadãos na defesa dos direitos humanos. Como o explica Habermas, os espaços públicos são a chave principal do funcionamento da democracia porque ela existe a partir de oposições, de contradições e de competições (no sentido de competição política) para chegar à melhor escolha em prol do bem comum. Porém, sem espaço público, sem debate aberto, a participação das cidadãs e dos cidadãos não cumpre o seu papel de contrapoder e de vigilância perante as práticas e as políticas. Por isso, perguntamos: até que ponto a democracia poderá conviver com espaços privados ou comunitários que não possibilitam o questionamento das suas próprias crenças e práticas ao nível público?
Por Léa Barreau-Tran
[1] Jürgen Habermas (1994), The Structural Transformation of the Public Sphere, Cambridge, Polity Press.
[2] Violação grave dos direitos humanos
[3] Jornal Noticias, dia 20 de Janeiro de 2012
[4] http://www.google.com/transparencyreport/removals/government/countries/
Deixe um comentário